Temática
Somos da Regional mais quente do Brasil e queremos que vocês sejam bem vindos a Salvador e a próxima Cidade FeNEA Nordeste. A Comissão Organizadora do EREA SSA 2017 tem paixão em construir pra vocês um espaço cheio de Arquitetura e Urbanismo, divertido e político. Vamos pensar em cidade.
O projeto nasceu da vontade de repensar cidade e o direto a esse espaço, pôr em discussão às questões Urbanas e Arquitetônicas embutidas nas realidades de uma Salvador contemporânea, metrópole de 467 anos que coexiste com diversas problemáticas, mas também com um histórico incrível de arquitetura, cultura e resistência.
Patrimônio Histórico, Planejamento e Reforma Urbana, Sustentabilidade, As Minorias na Complexidade Urbana e o Modelo Atual de Ensino são os pontos que direcionarão as discussões, atividades e culturais que farão parte dessa semana de troca e aprendizado.
Em tempos em que ser diferente ainda incomoda e gera intolerância explícita, opressora, nós perguntamos “Qual a cor dessa cidade?” E esperamos que todos estejam abertos à complexidade dessa pergunta, tanto quanto a complexidade de se pensar em uma realidade melhor, de cidadania digna.
Por acreditar no ganho do contato com essa cultura, com essa gente e cidade, defendemos e estamos na construção de um sonho em Salvador, sonho este em constante aspecto de construção. Entendemos que nosso papel não girará entorno da mudança direta na vida de seus residentes ou na paisagem atual da cidade, mas para começo, sob essa perspectiva, todos terão a experiência da construção de espaços coletivos, de troca conjunta com moradores e com pessoas que representem à pretensão do projeto EREA SSA 2017.
Nós enquanto massa crítica, enquanto futuros arquitetos e urbanistas precisamos entender e nos preocuparmos com a saúde e fluidez do organismo CIDADE. Propomos que todos possam contribuir com ideias e que estejam abertos à troca delas, respeitando a individualidade e a luta que cada um representa – lutas que dialoguem com o direito de existir e habitar com igualdade.
Qual a cor dessa cidade?
A cidade e as questões urbanas
A cidade, acolhedora e promissora em oportunidades, deveria ser igual na idealização de sua existência, como um espaço vivo, dinâmico e anti-hierárquico. Entretanto, tem sido resultado de um urbanismo de espaços financeirizados e preocupados com a manutenção de serviços/produtos, onde o cuidado com as pessoas e suas respectivas realidades é pensado de forma superficial e sem causar dano ao “bem maior” – o capital.Salvador vista em cartão postal com suas belas praias, sítio de importante acervo histórico-arquitetônico, cidade de carnaval emblemático não é fiel à pluralidade de características que abarcam os seus traços urbanos. Imersa, assim como a maioria das grandes cidades brasileiras, em um segregacionismo espacial, econômico/social, étnico e cultural, essa mesma cidade que é posta na vitrine do turismo nordestino, caracteriza-se pela existência de várias cidades em uma mesma, realidades limítrofes e distintas. A primeira capital do Brasil não sabe o significado de não existir sob a demasiada herança de uma colonização escravocrata e de democracia usurpada. A casa grande e a senzala soteropolitana passaram por readequação, embora libertos, a população negra continua tendo seu papel de protagonista negado, suas conquistas são tratadas como fruto da “bondade” do homem branco. A lei Aurea não garantiu a eles o direito a cidade, pelo contrário, passaram da condição de escravo à condição de não cidadão. Para entender o resultado atual da conformação urbana soteropolitana é preciso entender e trazer ao texto um pouco do histórico do seu desenvolvimento espacial em consequência da realidade do Brasil Colonial. A luta da população negra, descapitalizada pelo direito de permanecer na cidade, ocorreu de forma árdua e sob o controle impositivo da burguesia. Na Salvador pós-colonial, ocuparam as ruas e os cortiços. Posteriormente, com a nova reestruturação espacial entre os anos 1940 e 1950 (Corso, 2008) por diversos fatores, a burguesia se desloca do centro, a população menos favorecida passa a ocupar as antigas edificações e espaços ainda não urbanizados, novamente sofrendo com a falta de estrutura.
Com a modernização da capital, depois de longo período de estagnação, entre as décadas de 1960 e 1970, o espaço urbano de Salvador continuou sendo consolidado por um urbanismo excludente pela administração da época. Apoiada pelo plano de Reforma Urbana de 1968 a Prefeitura que detinha maior parte das terras da cidade, passou o direito das terras para as mãos da iniciativa privada (Corso, 2008). Definida pela lógica capitalista do mercado imobiliário foram traçados caminhos opostos em relação à ocupação espacial, a população pobre continuou a habitar as áreas periféricas, através da ocupação informal da terra em áreas inapropriadas à moradia. A ocupação espontânea direta e coletiva à revelia do proprietário latifundiário, sem consentimento, negociação ou comercialização (Souza, 1990), se dirigiu inicialmente para a zona norte (Soledade, Lapinha, Casa Nova) e posteriormente ao subúrbio. Este fluxo se deu impulsionado pela construção ferroviária que ligava esta área até às proximidades do comércio, e às zonas limítrofes com outros munícipios – que não faziam parte da especulação imobiliária. A elite financeira, em contraponto foi de encontro à zona sul, e toda orla atlântica, para as áreas de maior infraestrutura e melhores condições de vida, impulsionadas pela melhores condições de vida, impulsionadas pela formação de um novo centro comercial e administrativo nas proximidades. A zona central, além de ser um limite segregacionista, entre as duas faces distintas, alocou condomínios de residência para “classe média baixa” que passou por continuada expansão por meio de novos residenciais populares e invasões coletivas, lidando ainda com a escassez de equipamentos urbanos e serviços.
Atualmente, Salvador nada mais é do que a intensificação de um processo de urbanização, que tem como objetivo a conversão do direito da cidade em uma “mercadoria de direitos”, atendendo assim a lógica de acumulo de capital onde a cidade é preparada para quem pode morar nos condomínios de luxo e superluxo, em bairros elitizados, nas novas zonas de especulação financeira, na orla atlântica. Em contrapartida a população de baixa renda continua a ocupar lugares distantes dos núcleos de serviços, marginalizados, sem infraestrutura, segurança e cultura, por ora, não são de interesse do mercado imobiliário. A organização da cidade e as condições de vida na Salvador de 2016 são reflexos de todo o processo histórico de formação e negação da população carente que compunha o cenário urbano desde sempre. A relação senzala/casa grande ficou mais ampla e complexa.Nos últimos 4 anos, a cidade e sua região metropolitana vêm passando por grandes reformas em espaços/serviços que sofriam pelo descaso, é importante ressaltar a importância da inauguração e ampliação das rotas do metrô, que representam um ganho para o dia a dia do soteropolitano que se deslocava de forma precária e engarrafada, contudo pensar Reforma Urbana é para além disso. Continua-se, sob essa perspectiva de garantir o deslocamento e não a heterogeneidade espacial, reafirmando a ideia que o pobre pode continuar habitando somente as periferias mediante a existência de mecanismos que o faça se deslocar para as áreas de trabalho. A essa população carente é dado o direito de visita à parte bonita e urbanizada da cidade, porém lhe é negado o direito de habitar esses espaços. Ao se falar em Reforma Urbana é preciso trazer o contexto social e econômico que está inserido em Salvador ainda hoje, onde a maior parte da população negra e parda continua vivendo nas partes mais segregadas e problemáticas, espacialmente falando, periferias que reportam não somente à precarização da moradia, da habitação, como também às relações desses habitantes com a cidade perante uma sociedade que vive a reafirmação da política higienista por parte dos gestores. Políticas públicas que atuam através da militarização ostensiva na periferia e criminalizam comportamentos indesejados que fujam dos costumes e aos padrões que interessam ao projeto de barbárie proposto pelo grande capital.
Entende-se também que todos esses conflitos, baseados em dialético histórico, cultural e urbano, são partes do que Marx e Engels denominam como Luta de Classes. Além de toda luta de gênero, onde a mulher precisa se rebelar contra o ideal patriarcal, para que assim possa fazer parte de espaços na sociedade, onde entende-se que não existe justificativa para a escravidão doméstica e distinção de direito perante os gêneros – vertente que será melhor explorada num outro texto de apoio – a questão urbana de Salvador está intrinsecamente ligada a questão da raça, a divisão do trabalho e a ordem financeira – consequência do colonialismo, do regime escravocrata e da intensificação do capitalismo.
Trata-se de uma sociedade que perpetua a ocupação da população branca nos melhores lugares/espaços, as melhores habitações, os melhores empregos e os melhores salários, enquanto a maior parte de Salvador, negros e pardos, vive em uma grade faixa de precarização – respectivamente – da moradia e dos serviços, num clima de insurgência urbana, filhos das resistências e da informalidade, rebelam-se e resistem, pois são essas suas alternativas para manterem-se firmes, vivos e com suas identidades ainda vivas. A discussão, proposta pelo projeto EREA Salvador 2016, não é sobre modelo econômico vigente, mas sobre a cidade, consequência desse modelo. É necessário pensar urbanismo e o preceito que se deve levar em consideração quando nos propomos a estuda-lo, atentando-se à participação popular, às novas organizações coletivas de luta e ao contato, vivência e embasamento com a sociedade marginalizada. Entendemos Salvador como uma cidade modelo do não urbanismo – alienador e anti-humano – e é através disso que propomos discussões e troca de ideias sobre os modelos atuais de urbanização e sobre o papel do Arquiteto Urbanista no entendimento e formação de espaços igualitários, com condições de uso e permanência saudável, para todo habitante da cidade. O espaço não é para ser um agente econômico, antes disso o espaço e a moradia de qualidade são direitos de todo cidadão (Estatuto da Cidade, 2010).
Patrimônio Histórico
A preocupação com o passado está presente na sociedade desde as épocas mais remotas, no Brasil as origens da necessidade de preservação do patrimônio se iniciam na década de 1920, onde os primeiros projetos de lei voltados a questão foram criados. Patrick Geddes e Marcel Poete defendem a ideia de que para um conhecimento da cidade no presente, seus desafios e problemas, é preciso ter um embasamento histórico. Assim pensar em patrimônio é também pensar em urbanismo e na proteção ambiental, pois estão intimamente vinculadas e não devem ser trabalhadas como atividades independentes umas das outras.
Na década de 60-70 a população brasileira crescia em ritmo acelerado tanto no campo quanto no meio urbano. O patrimônio estava ameaçado e destruído. Assim começaram a surgir órgãos especializados em diversos estados e municípios. Em destaque a implantação do Programa de Cidades Históricas, no qual as ações de preservação se deslocavam do esquema de tombamento de edifícios isolados para formas abrangentes, essa ação intensa no meio urbano envolve uma série de questões, até então pensadas de formas parciais e que apresentam necessidade de uma análise mais complexa. Existe também a dualidade entre manter a preservação e projetar novos bairros, mas até onde preservar e até que ponto renovar?
Na cidade de Salvador não é diferente, nos anos 60 começa uma política de preservação do patrimônio histórico ligada a uma política de desenvolvimento turístico no Brasil. Salvador tinha posição excepcional devido ao seu acervo arquitetônico extenso, a sua área litorânea e a suas riquezas culturais. Ao longo das décadas intervenções vêm acontecendo no centro histórico, no entanto não conseguiram reverter o quadro de degradação. Esse projeto de funcionalidade da área implicou na destinação de imóveis para uso público, comercial e serviços, diminuindo cada vez mais o uso habitacional. Do ponto de vista social, a questão habitacional foi caracterizada pelo abandono radical de intervenção com mantimento da população, foram oferecidas indenização ou relocação dessas famílias como negociação, sendo algumas efetivas outras não.
Hoje resta apenas uma pequena parcela dessas pessoas que conseguiram se manter no local, mas a grande questão é, a falta mais uma vez de políticas que conversem, não se pode pensar em conservação do patrimônio e não pensar em outros fatores que implicam, como a questão da habitação. Muitos desses casarões se encontram em desuso hoje, onde poderia morar muita gente. Observou-se também a ação de grupos coorporativos privados em processo de construção de patrimônio fundiário em áreas adjacentes, com caráter especulativo, a exemplo do que ocorre na região de Conceição - Largo Dois de Julho. Alguns problemas são apontados na região atualmente após essas especulações, como a perda da dinâmica comercial, aumento do tráfico de drogas, a insegurança, a diminuição do policiamento, a degradação do ambiente construído, o assedio aos turistas, o turismo sexual entre outros. As modificações no papel de capital econômico das cidades decorrentes da aceleração do processo de globalização nos ajudam a compreender o que acontece hoje com a preservação patrimonial, ambiental e com o urbanismo.É necessário o pensamento de preservação da cidade como um todo, não apenas em espaços fragmentados, criando um processo de musealização da cidade. Os planos urbanísticos não se organizam de modo integrado com os tombamentos. Não existe no IPHAN um sistema eficiente de monitoramento, assim como a valorização social desse patrimônio perante a população e, por conseguinte não existe uma análise do impacto social/financeiro que esses mesmos patrimônios causam na realidade dos que habitam seu entorno. É fundamental a implantação adequada desse sistema, assim como o debate sobre a questão patrimonial deve se ampliar além do círculo de arquitetos, urbanistas, restauradores e especialistas, deve-se atingir toda a gama da sociedade civil, para que cada vez mais exista o conhecimento perceptivo e compreensivo da importância que, um espaço, um edifício, um monumento, uma cultura tem como agente nas relações transitórias na cidade, além de serem grandes atores que permitem o contato com a história.
“Para bem restaurar, é necessário amar e entender o monumento, seja estátua, quadro ou edifício, sobre o qual se trabalha... Ora, que séculos souberam amar e entender as belezas do passado? E nós, hoje, em que medida sabemos amá-las e entendê-las?”
Camillo BOITO, 1884.
Arquitetura, Urbanismo & Meio Ambiente
A documentação de Estudo de Impacto Ambiental (EIA) e Relatório de Impacto Ambiental (RIMA) surgem no Brasil em 1981 com as modificações na Lei federal 6.938, instituindo a criação do CONAMA (Conselho Nacional de Meio Ambiente) e determinando a Política Nacional de Meio Ambiente. Estes são instrumentos fiscalizadores e reguladores dos efeitos de impacto ambiental nos projetos e intervenções arquitetônicas e urbanísticas. Tais parâmetros passam a ser mais rígidos a partir da ECO 92- RJ, onde foram debatidas as questões urbanas, rurais e coletivas a nível mundial, estabelecendo parâmetros universais de preservação ambiental, indiferenciando os países por suas economias. Desde então, a legislação ambiental tem se sobreposto à legislação urbanística nas questões de uso e ocupação do solo, conforto térmico e acústico e tudo o que tange a preservação ou reutilização de recursos naturais, resignificando a discussão do espaço e importânciasócio urbanístico no trabalho do arquiteto. Toda produção passa a ser analisada por estruturas administrativas e chegam à discussão nas comunidades organizadas através das audiências públicas, exigindo cada vez mais a participação do profissional de arquitetura nessa reflexão e a estrutura de uma formação acadêmica já baseada nesses preceitos. É preciso que a formação vá além do “encontrar soluções para os problemas” e que se enquadre nas edições de normas ambientais, sem que seja necessário especializações ou complementações educacionais. Apenas no ano de 1995 é que surge uma tímida indicação para este caminho, quando a portaria 1770 do MEC reformula o Currículo de Arquitetura e Urbanismo, introduzindo os Estudos Sociais e Ambientais. Área que, por sua vez, é fragmentada mais tarde (1999), em Estudos Ambientais e Estudos Sociais, abrindo espaço para que as universidades de maneira individual se aprofundem mais ou menos em tais aspectos em seus currículos de formação.
É preciso a formação acadêmica que vá além do “encontrar soluções para os problemas” e que se enquadre nas edições de normas ambientais, sem que seja necessário – obrigatoriamente, posteriormente a conclusão, especializações ou complementações educacionais para tratar uma demanda que é presente na vida do profissional, recém formado, que precisa ingressar no mercado.
Considerando que hoje 50% da população mundial ocupa os centros urbanos, a questão da preservação, manutenção e recuperação ambiental está diretamente ligada aos profissionais que pensam a cidade. Cabe ao arquiteto e urbanista a desmistificação de que a construção de cunho ambiental está deslocada do meio urbano, locando-se em ambientes não-urbanizados. É preciso desenvolver a sustentabilidade nos edifícios e lotes comuns, adaptando os conceitos de arquitetura sustentável e o pensar da cidade democrática às condições locais, disponibilidade de materiais e mão-de-obra. Tal percepção precisa ser fomentada nas grandes cidades seja por conselhos universitários ou por órgãos regulamentadores da profissão, criando com o tempo, a cultura do pensamento ecológico. O descolamento da arquitetura sustentável e a ideia de que é um método para poucos também precisa acontecer, pois não se trata necessariamente de alta tecnologia, mas de soluções técnicas simples e acessíveis articuladas nos projetos de arquitetura e planejamento ambiental. Na cidade de Salvador é possível observar que nos últimos dez anos, parte da construção na faixa atlântica tem se utilizado dos quesitos de sustentabilidade. Tais empreendimentos que se auto intitulam sustentáveis, conectados com a natureza, ou que remetem de alguma forma, através do marketing, sua relação com o verde, apresentam na verdade uma preocupação bastante superficial, relacionada à venda. É mais uma adaptação às exigências de mercado que uma real preocupação ambiental, visto que sua construção deriva de grandes áreas desmatadas e sua grande maioria não apresenta planos ou projetos sequer de saneamento básico, principalmente no que tange as áreas mais distantes do centro como o Litoral Norte.
São empreendimentos voltados para as classes mais altas de Salvador e região metropolitana cuja “conexão com a natureza” provém de incessantes feridas na faixa de mata atlântica e região de dunas restantes e que encontram aporte cada vez maior na legislação municipal. Quando apresentam algum fator de redução de impacto ambiental, limitam-se a sistemas de diminuição de consumo de energia e água, certamente por apresentar grande vantagem financeira ao consumidor final.
Numa escala mais abrangente, vemos grandes intervenções do poder público que não apresentam os Relatórios de Impacto Ambiental. As vozes das comunidades são silenciadas em audiências públicas forjadas onde os projetos são apresentados sem abrir espaços para debates. Tal realidade tem se repetido em quase todas as grandes obras de mudança de tráfego, aberturas de grandes vias e requalificação de espaços públicos como é o caso da Via Expressa, o polêmico projeto da Linha Viva, que em 2014 estimava a retirada de três mil e duzentas famílias (linhavivanao.org), e as últimas intervenções na orla da cidade. São projetos que não têm levado em conta as áreas de preservação ambiental, as questões relacionadas a escoamento de águas pluviais, recuperação ou degradação dos rios e tampouco as relações sociais já constituídas nas comunidades mais pobres, além de outros fatores como materiais e mão de obra disponíveis.
Por isso é preciso que façamos uma profunda reflexão sobre a atuação e formação desses profissionais, que já não podem continuar na contramão dos indicativos internacionais de meio ambiente e ecologia. São trinta e cinco anos de disparidade entre as definições das leis nacionais com a real aplicabilidade dos mesmos nos meios urbanos e rurais e a possibilidade mais tangível para a mudança dessa realidade é através das bases de formação e discussão nas universidades com a comunidade civil.
Do Ensino ao Trabalho
Muitos jovens iniciam o curso com uma versão muito superficial sobre a profissão. Essa visão vem do que a sociedade passa: um ser com qualidades magníficas de estética e design que simplesmente desenha edifícios primorosos, importados de uma cultura europeia, completamente a parte de nossa cidade tropical. Na História, temos a imagem do arquiteto-construtor, que produziu grandes obras e monumentos de destaque na História. A figura do arquiteto não estava tão ligada a pequenas obras, que cabiam ao saber popular, enquanto que ao arquiteto-construtor cabiam as grandes obras públicas e representativas de poder governamental, religioso ou econômico. Talvez seja daí que venha sempre a imagem do arquiteto elitista, que atende a uma minoria rica. As qualidades e competências do arquiteto podem ser observadas em dois momentos distintos: quando somos jovens secundaristas que desejam ingressar na profissão, baseado no que conhecemos como a produção do profissional de arquitetura e urbanismo; E quando ingressamos na vida acadêmica, que reforça essa produção. A reflexão sobre a desconstrução dessas características elitistas e até supérfluas tem lugar no “papel social do arquiteto”. Ora, se aprendemos na Universidade como projetar espaços abertos e fechados que garantam qualidade de vida à população, por que trabalhar para uma pequena porcentagem mais rica e detentora do poder econômico na cidade? A mesma academia que dá uma base, deficiente muitas vezes, para o entendimento de projetos de cunho coletivo, não reforça a importância de um debate mais amplo e complexo sobre sociedade e as questões diretamente ligadas ao papel do profissional em questão nesse meio, incentivando muito mais a produção mercadológica - arquitetos para atender somente ao mercado. O que provoca ainda mais o sentimento de insatisfação é perceber que o mercado não acaba por ser somente a consequência de um sistema em que estamos inseridos, mas que existe uma ampla formação de profissionais alienados à ética e o gênesis da profissão. Um pouco se reflete na produção dos trabalhos de Conclusão de Curso, onde vemos trabalhos monumentais, um desfile sem fim de Centros de Reabilitação, Clínicas, Centros Poliesportivos, Centro Culturais, Museus, Resorts influenciados pelos projetos contemporâneos, onde demasiadamente caixotes de vidro continuam sendo construídos sem levar em consideração os princípios de conforto ambiental, de qualidade térmica na construção e da sustentabilidade envolvida em todo o processo.
As Universidades estão formando pequenos robozinhos que sabem fazer as mesmas coisas e devem pensar de maneira uniforme, o desenho prevalece sobre a arquitetura. Mais vale uma maquete eletrônica bem renderizada do que realmente entender a dinâmica da sociedade. Ás vezes alguns saem do padrão e partem para o urbano, com intervenções, planos de bairro, parques e praças. Raramente um estudante se interessa por um projeto de interesse social. Pela lógica e dogmas enraizados, o arquiteto é aquele que deve projetar grandes obras, não sendo interessante se preocupar com quem não tem condições de custear os seus serviços. A retomada do papel do arquiteto enquanto promoção da cidadania e direito à cidade é feito por atividades de extensão dentro de poucas Universidades ou por escritórios-modelos, mas ainda são atitudes tímidas, que não agregam a maioria dos estudantes nem estão presentes em todas as Escolas de Arquitetura de Salvador.
Quanto à relação de trabalho e estágio, temos duas visões distintas das funções: O estudante que se dedica a funções dentro do ambiente acadêmico - como a monitoria, a iniciação científica, a participação em atividades de extensão e a participação no movimento estudantil, encabeçado pelos Centros e Diretórios Acadêmicos; E o estudante que procura vagas em escritórios de arquitetura, empresas privadas e órgãos públicos. Embora alguns poucos escritórios saiam do padrão e inovem o mercado com propostas diferenciais e trazendo pra seus projetos e princípios uma conceituação mais humanitária da Arquitetura, o meio de contato mais constante com uma vertente mais crítica/científica e filosófica da profissão acaba por ficar a cargo das poucas vagas dentro de projetos de extensão e iniciação científica da academia.Em contra partida aos produtos e as formas mainstreamizadas de atuação, existem os que pensam diferente e que levantam a possibilidade de contribuir para a sociedade, elaborando e executando obras que fogem à lógica mercadológica atual. É importante contemplar e estar atento a essas novas iniciativas de trabalhar Arquitetura e Urbanismo, seja para ter exemplos de inovações, seja para levantar debates sobre essas novas propostas.
Nessa Cidade: Cadê o Black dela?
Na cidade mais negra fora da África precisamos falar sobre nossas mulheres, e mais do que isso, sobre nossas mulheres negras, periféricas, que ocupam os locais mais problemáticos de nossa Salvador nas mais variadas escalas, onde a ocupação dos espaços públicos ocorre de maneira etnocrática e socialmente segregada. Mães que sobrevivem ao genocídio de seus filhos, a habitação de má qualidade, a insegurança pública, o serviço mal remunerado e ao não reconhecimento. Precisamos falar sobre as mães de filhos sem pai, que saem de suas casas para trabalhar em casas que não são suas e cuidar de filhos que não são seus. Precisamos falar sobre o empoderamento dessas mulheres, sobre a necessidade do seu reconhecimento enquanto viventes da cidade – e não sobreviventes, por que se o nosso feminismo não puder falar sobre essas mulheres, então ele não nos serve. Somos filhas de uma cidade que abandonou sua periferia e que custa a compreender a importância que nós temos para o seu desenvolvimento econômico e que se assusta quando se esbarra no nosso poder político de transformações sociais. As escalas de segregação da mulher se apresentam desde o zoneamento das intervenções de melhoria urbana nos bairros – algumas mulheres estão mais seguras para chegar ou sair de suas casas, seja por iluminação da via pública ou demais condições de caminhabilidade -, ao programa e projeto de suas residências – que abarcam ou não o famigerado “quarto de empregada”, ou locam áreas “tradicionalmente da mulher” em péssima posição em relação ao sol e ventilação inadequada. Recentemente vimos algumas de nós comemorando o direito de saltar do ônibus fora do ponto após as 22h, mas será que é isso que queremos? Apesar de ser um passo importante, queremos descer no ponto com segurança o suficiente para chegarmos a nossas casas sem medo de sermos violentadas e não uma medida provisória que nada mais é do que admitir “não estamos seguras, não temos direito a essa cidade”. Para isso, vamos debater quais aspectos devem ser repensados para que o direito de vivencia da mulher seja garantido, entendendo que o empoderamento no espaço urbano vai muito além de ascensões individuas e refere-se ao coletivo. Precisamos, todas nós, independente de cor ou classe social, ter direito a uma vida digna, estruturada no que queremos ser e não no que alguém nos destinou. Não estamos mais dentro de nossas casas há muito tempo, estamos nas ruas, no mercado de trabalho, temos voz e vida.
O lugar do negro na cidade de Salvador
Salvador é a capital com maior número de descendentes negros fora do continente africano. Cidade poética que traz em sua cultura fortes heranças da sua essência negra, “Roma Negra” para uns, “Meca da Negritude” para tantos outros, ironicamente esta mesma cidade é também lugar de opressão ao povo negro e isso se torna legível quando analisada a sua distribuição no território soteropolitano.
É possível constatar que os bairros onde estão concentrados os maiores percentuais de população negra são também os mais afastados dos centros de Salvador, áreas com grandes carências de infraestrutura urbana e menores ofertas de oportunidade. Indo além da divisão desigual do espaço urbano e das iniciativas de melhoria desses espaços, a falta de políticas de inserção social efetivas, que garantam educação e qualificação profissional, retira do negro o direito de entrada e permanência nos mesmos campos de trabalhos e por consequência estão condicionados a faixa salariais distintas.
Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) revela que o salário médio dos negros é em média 36,1% menor do que os trabalhadores não negros; Entre os tantos outros fatores de desigualdade que já foram apresentados.
Ser negro só é bem quisto nas estratégias de marketing ou “branding urbano” da lógica contemporânea de consumo cultural. Uma “limpeza étnica” repressiva e maquiada, que acontece todos os dias, onde a cultura negra é negócio turístico, mercadoria, mais um objeto de “espetacularização da cidade”. Entretanto quando se fala dos direitos civis da mulher e do homem negro tudo se torna um caso a parte de legitimidade a integridade física e moral. Como nós, arquitetos, urbanistas e cidadãos devemos operar nessa conjuntura?
Iniciativas pontuais de coletivos militantes de negras e negros, dentro e fora das universidades tem tomado força. Em 2015 tivemos em Salvador eventos marcantes como a Marcha Internacional Contra o Genocídio do Povo Negro, a Marcha do Empoderamento Crespo e diversas iniciativas que deram visibilidade à luta.
Muitas já foram às batalhas travadas e ganhas, mas ainda há muito o que se fazer. Construir mais políticas afirmativas, discutir e conquistar essa cidade. É fato que a população negra se encontra em maioria e a apropriação dessa luta de representatividade é fundamental. Enquanto futuros arquitetos e urbanistas, cabe à nós, entender como essas disparidades se refletem no território e buscar caminhos para o desenvolvimento de cidades socialmente mais justas, por que o traçado e as políticas de projeto também podem contribuir com a mudança deste cenário.
“Se o morro descer e não for carnaval, o povo virá de cortiço, alagado e favela mostrando a miséria sobre a passarela, sem a fantasia que sai no jornal, vai ser uma única escola, uma só bateria. Não tem órgão oficial, nem governo, nem liga nem autoridade que compre essa briga, ninguém sabe a força desse pessoal, melhor é o Poder devolver à esse povo a alegria , senão todo mundo vai sambar no dia, em que o morro descer e não for carnaval.”
Wilson das Neves
Por uma cidade onde os corpos sejam livres
Na cidade da diversidade, em pleno momento de se reafirmar quem é e de ter o direito de ser, percebe-se lados muito distintos de uma mesma realidade. Ainda que a lésbica, o gay, o bissexual, a pessoa trans*, intersexual ou quaisquer outros rótulos criados sejam mais comuns do que se possa imaginar, e mesmo que haja a violência sobre esses rótulos, Salvador tem algumas determinantes que decidem se essa pessoa será violentada ou não. Ser branco ou preto é a principal delas. São tempos de empoderamento. Há um cenário fervilhando no espaço urbano: as gay, as bi, as tri estão tornando a tomar as ruas, antigos espaços estão voltando a existir. Claro que isso não significa que são tempos felizes no todo e que não há violência. A violência existe sim e está presente nos detalhes mais simples do dia a dia de qualquer um. O olhar feio, o comentário maldoso, a agressão física e psicológica. Semanalmente temos casos registrados no Centro de Referência e Atendimento a LGBT, parte da Secretaria Municipal de Reparação – SEMUR. E é imprescindível lembrar-se e tornar forte o elo mais empoderado que existe, um ser tão surpreendente que assumiu a forma que quis e que acredita com toda a graça que esta é sua verdadeira cor. O cenário trans em Salvador, ainda que já exista diversas formas de apoio, ainda é o mais negligenciado inclusive dentro do próprio universo LGBTQ, com a invenção desses guetos que de nada servem. Os números ainda são gritantes. Ser trans* é a forma mais poderosa de ser quem você é, e vivemos um momento em que estas pessoas são totalmente marginalizadas dentro do meio social.
Já dentro do meio acadêmico vemos um desenrolar ainda muito tímido. Enquanto algumas instituições já carregam essa bandeira através de grupos e estudos avançados, outras simplesmente ignoram essa existência tão comum. Vemos em Salvador, de maneira geral e nos cursos de Arquitetura e Urbanismo, um alunado que pouco se importa com essa ou quaisquer outras questões sociais visto que a máquina de negócios chamada educação que eles sustentam não admite espaço para humanidades em geral. É preciso falar mais, gritar mais, se mostrar mais. Principalmente enquanto ser LBGTQ numa universidade em Salvador ainda for ser invisível. Precisamos discutir não somente sobre a violência, mas sobre a necessidade de rótulos, que se estende não só nesse caráter mas em todas as esferas do ser humano. O rótulo, o estereótipo, nunca poderão resumir ou afirmar que alguém é algo e fim. Somos muito mais diversos e complexos do que uma palavra, e esse é o momento certo de iniciar esse debate. Afinal, eu posso ser uma cor só, como também posso ser todas as cores juntas e não há quem mude isso.